Saturday, January 29, 2005

Slice of Life

Foi algo que me ocorreu, assim simplesmente.
Retirado das fitas de banda magnética embrulhadas e enrodilhadas no fundo da minha memória, com 16 anos de voltas pelas espirais que em que a mente tomba ou ascende, descobri aquela pequena fatia de vida que em tanto vitalizou a dualidade entre a crueza daquilo que se transpõe, a pungência do que se idealiza e a ténue linha entre o bom e o mau.
Slice of Life é arrancada de lá do fundo onde as coisas parecem perdidas e de repente vivem, ofuscantemente ocultas nas actualidades.
Slice of Life é um espreguiçar morno de bem-estar, é uma tensão que dura um micro-segundo, é toda a virtude de desvirtuação do tradicional que um ouvido pode apreciar. Nem que seja uma vez na vida.
A mim, há cerca de 16 anos foi uma das inúmeras coisas que condicionou a forma como abordo o ouvido.
E o sonho.
O sonho de dizer tanto suave e terna, como guturalmente - mas sempre de intenção vincada - a outrem que o objective:
I am your Slice of Life.

Monday, January 24, 2005

Uma Questão de Burros

A Comissão Europeia elaborou um quadro de apoio financeiro ao Burro Mirandês.
Diversos sectores nacionais aplaudiram a iniciativa realçando o esforço de conservação de mais uma raça de uma espécie ameaçada, depois de já há alguns anos que terem sido criados mecanismos de apoio comunitário ao Burro Ibérico, outra raça ameaçada, especialmente em contextos de agricultura tradicional e/ou biológica contemplados na última reforma da PAC.
Diversos analistas apostam fortemente na possibilidade da Comissão Europeia criar em breve um fundo de apoio ao abate do Burro Português - vulgarmente conhecido como Chico Esperto - cujas quotas em território Continental e na Região Autónoma da Madeira, excederam largamente a capacidade de absorção do mercado nacional (excedentário) e comunitário (deficitário).
Fontes junto da Comissão Europeia indicam uma forte mas subtil oposição por parte do Comissário Europeu, todavia encurralado pela pressão dos membros da sua equipa. A mesma fonte garante que existe um forte lobby em Estrasburgo e em Bruxelas que visa travar a implementação deste plano de abate ao Burro Português apontando como exemplo os súbito acréscimo de financiamentos de associações trans-europeias de protecção da vida animal e o surgimento de uma nova rede de protecção das minorias contemplativas da pobreza de espírito.
Um membro da sociedade semi-secreta conhecida como Ordem do Grande Desenrascanço Geral e Silencioso das Coisas (OGDGSC), que preferiu manter o anonimato, refere que os apoios que têm vindo a receber para travar esta medida, têm superado todas as expectativas qualitativas e quantitativas, muito além das ajudas logísticas e financeiras tradicionais de todo o espectro do sector político nacional, indicando que conta com o apoio da generalidade do sector privado que ganhou um novo fôlego financeiro com as deslocalizações em massa para a Ásia e Europa de Leste. A OGDGSC nega porém qualquer envolvimento com a empresa LMS – Last Minute Solutions, sediada no offshore da Madeira que tem sido apontada como o interface dos financiamentos deste lobby. Segundo este membro, a referida sociedade não tem qualquer interesse em fragilizar a posição do Comissário Europeu.
Em Estrasburgo, as movimentações nos bastidores do Parlamento Europeu (PE), indicam uma inédita solidariedade inter-partidária dos representantes nacionais ao ponto, segundo fontes, de os deputados do CDS-PP admitirem votar favoravelmente uma proposta que o Bloco de Esquerda (BE) pretende apresentar, que visa uma recomendação à Comissão de aumentar as quotas do Burro Português no mercado europeu e financiar uma campanha europeia de sensibilização de aceitação e tolerância ao Chico Esperto. As mesmas fontes referem que o principal argumento do BE se centra na necessidade escoamento de algo que em Portugal se tornou amplamente excedentário, um argumento que parece recolher simpatia junto dos sectores do PE mais euro-cépticos.
No espaço nacional, em plena campanha eleitoral, um prudente silêncio é o que mais se faz ouvir em todos os quadrantes políticos, embora diversos analistas apontem o facto da iniciativa de protecção ao Burro Mirandês, ter sido planeada sem o cenário de eleições estar em cima da mesa.
O dossier Burro Português promete ser um tema quente para o próximo governo – qualquer que seja a sua cor política - já que segundo informações de última hora, diversos cientistas, economistas e empresários portugueses na Diáspora pretendem pressionar a Comissão Europeia a acelerar o plano de abate do conhecido Chico Esperto estando dispostos a considerar positiva a limitação desta medida ao território continental.
Contactadas, diversas associações cívicas das principais cidades do País, manifestaram preocupação pelo possível aumento de excrementos de Burro nas calçadas, jardins e espaços públicos, se os moradores dos bairros históricos confirmarem a possível tendência de juntar ao cão um Burro Mirandês nos seus apartamentos. Todavia, as associações contactadas são unânimes quanto à inevitabilidade a curto prazo de um aumento significativo de excrementos do Chico Esperto, ou seja, do Burro Português.
Pê.

Tuesday, January 18, 2005

Solos

Saio do "Buraco" esta manhã, com o fim de comprar açúcar para o indispensável produto da bodum que toda a santa manhã tomo.
Subo o labirinto-catacumba da saída da toca, atravesso o hall do vetusto prédio de fundações manuelinas e restauração pombalina, alinho-me pela ruela tão portuguesa e invade-me imediatamente o ruído ensurdecedor de uma trituradora de lixo.
Estacionada à porta de um pequeno prédio, igualmente antigo, com as suas varandas férreas esverdeadas, funcionárias camarárias alimentam-na de objectos e sacos vários que trazem de algures de lá de cima.
Verifico o carro, ali estacionado atrás do hospital, pois ontem foi noite de Segunda Feira e hoje é dia de Feira da Ladra, não fosse o diabo tecê-las: não me apetecia nada ter um vidro partido neste fim do mês, pelo que tive que sossegar o espírito.
Regresso, e na compra do açúcar, cortando o ruído da trituradora com a voz, pergunto a quem geralmente sabe de tudo: quem precisou de um camião inteiro para tirar o lixo de casa?
O indivíduo, era andrajoso, com quilos de roupa velha por cima de um aspecto que lá no fundo poderia ter sido de outra pessoa outrora.
Terá estudado, diz-se, e que também ter-se-à dedicado à fotografia, e que terá iniciado uma carreira profissional que se afiguraria brilhante, não fosse ter algo acontecido que associado à ocorrência da morte da mãe deixou-lhe uma marca que nunca mais o abandonou.
Passou a viver entre escombros de lixo coleccionado e acumulado durante mais de duas décadas.
Hoje, com pouco mais de cinquenta anos foi colocado num lar.
É o triste epíteto de um universo a solo, com os objectos, afectos e territórios deste mundo fechado sobre si mesmo, materializados no lixo apanhado e coleccionado.
Presto-lhe esta homenagem, pois causa-me receio esta solidão alheia em que se vive, quando não se vê que se está fechado em intermináveis "loops" de diásporas das ideias e das emoções.
Estes Universos a Solo causam-me mesmo muito medo.
E quem diz que não causa, ou mente ou se engana a si próprio.
Ou então não sei, ora...
... às vezes, a pungência das coisas leva-me a pensar que não saberei mesmo nada, nada, nada...

Monday, January 17, 2005

Comptas..

Há coisas – como Portugueses - em que somos definitivamente especialistas..
Uma das mais paradigmáticas em que somos os “melhores do mundo”, é a transformação daquilo que promove a simplificação em trapalhada, como um véu que desce cobrindo as incompetências e incongruências humanas.

Quantas vezes não se ouve, ao longo da última década, que a culpa de determinada coisa é do “sistema informático”, tal e qual como se dissesse que terá sido a “vontade de Deus”, ou do “Diabo à’tentar ali atrás da porta” ou de outro qualquer malvado mafarrico, coitado, que leva com as culpas em cima de algo que nem na bíblia se concebia: a computação cruel e fria de dados ao serviço dos humanos.

O recente circo da colocação de professores, revela-o da forma mais desumana possível, numa interdisciplinaridade de trapalhada, mau profissionalismo, pura incompetência e cru desrespeito pela inteligência das pessoas.
Sinteticamente, se o Ministério da Educação não cumpriu os prazos previstos contratualmente para a entrega dos dados à empresa, esta deveria ter rescindido imediatamente com justa causa o contrato a que estava vinculada. Por isto mesmo, a responsabilidade pertence a uns, pela incompetência habitual da administração pública, e a outros, pelo manifesto mau profissionalismo e incapacidade de se protegerem a si próprios.

Se recuarmos um ano, observamos que o Ministério da Educação anunciou que publicaria às 00 horas de tal dia os resultados da colocação dos professores de então. O sistema falhou, encravou, e o responsável disse então em várias entrevistas, exultante e vibrante, que se tinha tido “hits” na ordem das centenas de milhar por hora, portanto, “era natural que o sistema informático não funcionasse como normalmente”. Ora, ou somos todos muito parvos, ou a empresa que desenvolveu o sistema não fez o pai nosso de qualquer produto antes de ser lançado: “Unit test cases”, “System Tests” e “Global System Tests” antecipando as condições críticas esperadas em tal situação. A culpa? Mais um vez é do “Sistema Informático” e não de quem o fez, ou de quem contratou quem o fez.

Recuemos ainda mais um par de anos, e relembremos os atrasos nos reembolsos do IRS e de pagamentos da Segurança Social. Depois de milhões de euros gastos durante mais de uma década na informatização dos serviços do estado, a responsabilidade, então, diluiu-se mais uma vez devido ao “Sistema Informático”.

Avancemos até ao passado recente.
Observamos Sócrates reunido com alguns “chefões” hi-tech num claro sinal de querer relançar a aposta nas “Novas Tecnologias”, com os calafrios óbvios quando o vimos muito proximamente do CEO da Pararede (Para quê.....???).

A aposta que se avizinha, não é inovação é mais do mesmo: Implementações de Sistemas decididos em jantaradas por pessoas sem qualificação para tal. Já que Sócrates é tão opinativo, dirá ele se prefere Linux ao Mac OS X, ou o OpenOffice ao Microsoft Office? Seria mais uma trapalhada em que provavelmente diria que gosta do MS-DOS do Mac, e em que talvez parafraseasse algum autor no seu livrinho de bolso de citações.
Especulações à parte, o facto é que o PS absteve-se na votação do Projecto de Lei 126/IX/1 (o link é um excelente exemplo de um rápido e bom sistema informático "à la Estado", como se tem feito: é lentinho, mas com persistência a página aparecer-lhe-à..!).
E ainda não se ouviu Sócrates quanto ao que pretende fazer com o software livre.
Ainda não se sabe se o PS pretende aproveitar a poupança de vários milhões de euros - tão necessários - com a implementação do uso do OpenOffice, por exemplo, em detrimento das pesadíssimas licenças pagas a companhias como a Microsoft, Pararede (Para quê..???) e afins.

São este tipo de Comptas Obscuras que me assustam.
Pê.

Para saber mais, se tiver pachorra e interesse:

http://www.ansol.org/
http://www.openoffice.org/
http://sourceforge.net/
http://freshmeat.org/
http://slashdot.org/

e muitos outros.

Screen do OpenOffice

Thursday, January 06, 2005

Dois Milho E Bum.

A quadra que finda formalmente no Dia de Reis, entre outros factores, constituiu uma óptima desculpa para um descanso predominantemente offline.

Esta quadra é factualmente reduzida a uma mescla pré-natalícia de sedução, com aquele ar fino e frio que chega à cidade, com as suas multidões misturadas nas montras temáticas, iluminações fálicas e extravagantes, o fumo das castanhas assadas, as entradas e saídas contínuas das lojas, os comentários dispersos sobre aquela peça ou aquele brinquedo, os grupos de pessoas que se passeiam para verem e serem vistos, a baba no canto da boca dos operadores de telecomunicações, em suma, um leve toque de nostalgia, simbolizada por um velhote de barbas brancas de roupa tingida a vermelho-coca-cola tal, que se neste país nevasse como em outros, seria uma Quadra de Fazer Chorar as Pedrinhas da Calçada.
Dá-se um descanso com as evocações dos valores familiares recheados de farrapos de papel-fantasia dispersos, e das contas à vida, e aguarda-se e combina-se a festa da mudança de algarismo no número que inúmeras vezes será escrito durante o ano.
Na ressaca dessa paz da compra e amor da oferta, Bum.
Afinal teria sido mais uma daquelas catástrofes que só acontecem aos outros lá distantes.
"Eh-pá, aquilo foi mesmo duro!" - comenta-se em surdina.
De repente todos somos um Voltaire horrorizado com o terramoto, maremoto e incêndio de Lisboa de 1775, o tal "castigo de Deus". Mas aqueles por lá não tinham a orgia do ouro, que segundo consta, se derreteu da talha dourada que todo o santo nobre e burguês teria na sua casa em Lisboa, na época, e que correu em regatos pelas ruas incandescentes, dividindo os esforços de salvamento para poder ser recolhido e levado para o único cadinho intacto após o desastre de Lisboa.
Estes não têm ouro a apanhar, nem destroços a valorizar para pagar reconstruções.

A Durão Barroso elevou hoje a ajuda Europeia para 1500 milhões de euros.
Aos quais se acrescentam 1000 milhões de euros, numa linha de crédito gerida pelo Banco Europeu de Investimentos.
Onde andam os EUA, excepto pelas poucas centenas de marines e helicópteros, que calhavam estar por perto num porta-aviões?
O cowboy viu-se transformado em coiote?

Por cá, entra-se no novo ano numa divisão entre o prenúncio místico do "fim disto tudo", e mais uma vez, perde-se uma oportunidade de sensibilizações e reflexão metodológica para alterações estruturais e necessárias quer no planeamento e conservação de Lisboa, quer na protecção civil. Não queremos, mais dia menos dia, ser alvo desta caridade. Ou queremos?

Por muito que custe, este Dois Mil e Cinco, soa-me mais a Dois Milho e Bum.
Milho para os Pardais.
Bum para os de sempre.
Pê.