Tuesday, January 09, 2007

God Save the Kings

Passaram-se dias sobre Dia de Reis, o tal alusivo à visita dos Reis Magos. Curiosamente é quando são oferecidos os presentes ao Recém-Nascido, mas o Pai-Natal, toda a publicidade e a movimentação da “bewildered heard” na caça ao presente ignora o facto.

Terminada a quadra, respira-se de alívio.
Começa finalmente a haver lugar para estacionar, para caminhar e deixa-se de chocar contra famílias inteiras hipnotizadas pelas montras no seu balbuciar murmurante e sentimento comunitário do “estamos nas compras”, aquele sentimento simples na qual se sente a manada vomitada dos shoppings, que descobre as montras no frio iluminado das ruas da cidade que tanto ignoram durante o ano.
Finalmente deixa-se de esperar numa fila de bomba de gasolina, para pagar o tanque cada vez mais caro, que o pai e as duas filhas discutam qual a melhor caixa de “Barbies” sob o sorriso cúmplice e discreto da empregada para com todos os presentes que desesperam. Numa estação de serviço.
Também, os penduricalhos brilhantes e adocicadamente “lolly-pops” começam a sair de tudo quanto é canto vazio, a limpeza possível dos ambientes regressa e a ausência dos enfeites volta a deixar sobressair as faces vazias e encerradas sobre si mesmas no vazio de história e de futuro que estas gentes deste país de império quedado mostram na sua normalidade.
Até que enfim que desaparece o contraste entre quem recebe 14 meses e quem não recebe, entre quem tem que juntar dinheiro para a quadra e entre quem não tem como. Começa-se a dissipar esta solidariedade mentirosa dos que de repente se lembram dos “pobrezinhos” e oferecem um kilo de arroz ou um litro de leite à saída do super-mercado, dos natais dos hospitais onde os idosos se quedam esquecidos e desterrados pelos seus – que se lixem os cuidados paliativos, desde que continuem os natais dos hospitais, pois, finalmente cala-se a mentira da solidariedade na voz de um povo mesquinho que não se preocupa nem com o futuro da sua identidade nem com as graves assimetrias que a ilusão dos Écu's ocultou sob o manto das infraestruturas.
Assim, termina mais uma época para esquecer, sobre a qual ninguém mais quer falar. Pois como se não bastassem as toneladas de doces consumidos pelas famílias, a memória que dela resta nada mais é do que um presente ou outro especial, ou dos kilos ganhos na celulite que se pretendem derreter preparando a Primavera-Verão que aí virá, sim, isso, do Natal ficam os kilos a perder, a memória de uma identidade civilizacional transforma-se num monte de banha nojenta a perder, a deitar fora, a expulsar. Indago-me sobre todos os kilos ganhos por todas as pessoas nesta quadra e neste país, acumulados, possivelmente encheriam de banha e celulite toda a bacia do Alqueva, numa barragem viscosa, mal-cheirosa e repleta de bolhas putrefactas com o excesso de solidariedade mentirosa ingerida neste Natal.
Os silêncios que finalmente chegam e também soam muito bem. Depois dos coros, dos jingles dos shoppings e dos sininhos que pairam por todo o lado, reinstala-se o silêncio do vazio das faces sobre si encerradas destas gentes anónimas que deambulavam pelas ruas. A mentira pessoal está novamente confinada à esfera individual.

Neste silêncio, neste vazio, nesta ressaca de desperdício, encontro finalmente espaço para me lembrar com saudade do Madeiro que era acendido, em miúdo, no adro da Igreja. Dos cantares “filhozes com vinho/não há igual”, dos sons dos crepitares das lareiras, das famílias reunidas, da paz que se instalava, das tréguas que se declaravam e dos cheiros de lenha no ar frio e seco que nos faz sentir com mais capacidade de respirar. Dos cumprimentares aos “updates” sobre as vidas e o último ano decorrido, às famílias ligadas mas um pouco distantes que nesta altura se tocavam. Tenho saudades de todo um clima que se instalava, e culminava com comunicações no Dia de Reis, quando ainda se desejava um bom Dia de Reis.

Pois na nossa identidade é neste dia.
Hoje, do que resta dela, este dia é reduzido ao desmanchar da árvore de Natal, e início da expulsão da gordura viciosamente acumulada..

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Fiquei pensando nas varias vezes em que li definições de dicionários aqui no seu blog e fui buscar no dicionário a definição para “consumismo”, a primeira palavra que me veio à cabeça quando li seu post
“1. ato, efeito, fato ou prática de consumir (comprar em demasia) (a recessão refreou o consumismo) 2. Consumo ilimitado de bens duráveis, esp. artigos supérfluos (a sociedade de consumo caracteriza-se por um consumismo delirante) 3. ECON doutrina de que um consumo crescente e ininterrupto é vantajoso para a economia (é difícil conciliar consumismo e ecologia)”.

E me chamou à atenção a palavra delirante. O delírio provocado pelos apelos da sociedade de consumo no consumidor burguês, impulsionado pela importância que é dada à aparência (numa época em que andei atormentada por trabalhar para alimentar essa sociedade, andei lendo "Crítica da Estética da Mercadoria", de Haug, que comenta esse desespero de "ser o que não é"). Acho que desde que a burguesia surgiu no mundo, ela se viu impelida a imitar a aristocracia e agora no século passado e neste, a classe média também segue querendo imitar a classe alta, compulsivamente, numa tentativa de solucionar suas frustrações sócio-psicológicas. E fica nesse consumo nojento em todos os sentidos, principalmente nesta época, em que o “espírito de natal” parece liberar tudo sem culpas, em nome da solidariedade e da confraternização. E é dada a largada ao consumo de produtos recheados de “ideologias” e cobertos por retóricas cada vez mais persuasivas suscitando o desejo por necessidades supérfluas como se fossem imprescindíveis à sobrevivência humana. O reino dos contos de fada liberado nesses poucos dias, o sonho da felicidade, do poder, etc

Depois de delírio, pensei em frénésie, e me veio à cabeça o filme Frenzy do Hitchcock. Não sei se você já viu o filme, que é um paralelo disso que você tratou aqui. Na realidade é uma antologia da comida, mostrando a sua chegada à cidade, sua distribuição, a população indo às compras (hortaliças, flores, frutas, legumes, cereais e batatas, no mercado de Covent Garden), sua maneira de cozinhá-la, etc. E depois numa seqüência, o filme mostra os esgotos, e os detritos a se desfazerem no rio (claro que com cadáveres boiando no Tamisa). Um ciclo que começa com alimentos frescos e apetitosos e acaba com a sujeirada que vai parar nos esgotos. E a narrativa mantendo essa temática todo o tempo, abusando das expressões francesas para a paixão e para a culinária, numa brincadeira de humor com uma soupe de poisson e um crime de passion.

E depois, falando em filmes, não pude deixar de pensar em La Grande Bouffe. Comida,sexo, morte num fim de semana marcado por excessos de mexer com os sentidos. Ferreri foi refinado, criou uma fachada elegante para ser mais contundente na demonstração da decadência de seus burgueses. Mas a orgia gastronômica, ou seja lá mais do que for leva-nos a pensar na inversão da regra básica do alimento como gerador da sobrevivência, já que é ele que os levaria à desejada morte.

Sei que tudo isso me faz pensar acima de tudo num grande clima de melancolia que vai de encontro ao clima de solidariedade e sei mais lá o que, que deveria imperar nessa época natalina, pelos preceitos religiosos. E já começo a pensar por outro angulo. O da religiosidade. Não é ela que prega comedimento nessa época? E quem não segue uma religião? Já vou longe nisso..risos.

Paro por aqui (mas ainda vou falar que quando me lembrei da cena em que os 4 homens do filme La Grande Bouffe ficam vendo slides de mulheres nuas, pensei que é similar à cena comum de gente jogada à frente da TV ou diante do computador vendo pornografia por horas a fio com o prato jogado ao lado, cheio de detritos de comida pútrida e fétida e cigarros apagados em copos com restos de bebida escurecida pela nicotina).

E vou dizer o que já deveria ter dito antes: Gostei do seu post.

12:33  
Anonymous Anonymous said...

Ahh, e esqueci-me de dizer que saí cantarolando:

Have you seen the little piggies
Crawling in the dirt
And for all the little piggies
Life is getting worse
Always having dirt to play around in.

Have you seen the bigger piggies
In their starched white shirts
You will find the bigger piggies
Stirring up the dirt
Always have clean shirts to play around in.

In their styes with all their backing
They don't care what goes on around
In their eyes there's something lacking
What they need's a damn good whacking.

Everywhere there's lots of piggies
Living piggy lives
You can see them out for dinner
With their piggy wives
Clutching forks and knives to eat their bacon.

12:38  

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