Tuesday, January 18, 2005

Solos

Saio do "Buraco" esta manhã, com o fim de comprar açúcar para o indispensável produto da bodum que toda a santa manhã tomo.
Subo o labirinto-catacumba da saída da toca, atravesso o hall do vetusto prédio de fundações manuelinas e restauração pombalina, alinho-me pela ruela tão portuguesa e invade-me imediatamente o ruído ensurdecedor de uma trituradora de lixo.
Estacionada à porta de um pequeno prédio, igualmente antigo, com as suas varandas férreas esverdeadas, funcionárias camarárias alimentam-na de objectos e sacos vários que trazem de algures de lá de cima.
Verifico o carro, ali estacionado atrás do hospital, pois ontem foi noite de Segunda Feira e hoje é dia de Feira da Ladra, não fosse o diabo tecê-las: não me apetecia nada ter um vidro partido neste fim do mês, pelo que tive que sossegar o espírito.
Regresso, e na compra do açúcar, cortando o ruído da trituradora com a voz, pergunto a quem geralmente sabe de tudo: quem precisou de um camião inteiro para tirar o lixo de casa?
O indivíduo, era andrajoso, com quilos de roupa velha por cima de um aspecto que lá no fundo poderia ter sido de outra pessoa outrora.
Terá estudado, diz-se, e que também ter-se-à dedicado à fotografia, e que terá iniciado uma carreira profissional que se afiguraria brilhante, não fosse ter algo acontecido que associado à ocorrência da morte da mãe deixou-lhe uma marca que nunca mais o abandonou.
Passou a viver entre escombros de lixo coleccionado e acumulado durante mais de duas décadas.
Hoje, com pouco mais de cinquenta anos foi colocado num lar.
É o triste epíteto de um universo a solo, com os objectos, afectos e territórios deste mundo fechado sobre si mesmo, materializados no lixo apanhado e coleccionado.
Presto-lhe esta homenagem, pois causa-me receio esta solidão alheia em que se vive, quando não se vê que se está fechado em intermináveis "loops" de diásporas das ideias e das emoções.
Estes Universos a Solo causam-me mesmo muito medo.
E quem diz que não causa, ou mente ou se engana a si próprio.
Ou então não sei, ora...
... às vezes, a pungência das coisas leva-me a pensar que não saberei mesmo nada, nada, nada...

2 Comments:

Blogger joao.filipe said...

Pois é..
É com uma lâmina fria que a sensação de corte surge, como um desmembramento.
A visão do interior substituída pela valorização dos objectos exteriores. Quantos não há por este mundo fora com lixo empilhado nos seus quintais, sótãos, arrecadações, garagens, barraquitas erguidas permanentemente provisórias ao lado de umas quaisquer couves à beira da linha ferroviária?
É quando os objectos, suponho, substituem as pessoas, como outras fazem com os animais.. Raios.. Risos..

13:27  
Anonymous Anonymous said...

Posso dar-lhe um palpite?
Saia do seu buraco, de quando em vez, mas não fique só a olhar.
É certo que a homenagem é bela e que só o facto de pensar nestas pessoas é sinal de dignidade, de preocupação (individual) mas vá mais longe, saia do seu buraco.
É legítimo ter medo da solidão, mas a sua ainda está para chegar se tiver que chegar....a desse senhor já chegou.
Saia do seu buraco e ajude.
É preciso muito esquilíbrio emocional, está preparado?
Quer que lhe conte um segredo? Sabe-me tão bem, cada vez que chego do lar onde sou voluntária, sentir que nesse dia, fiz pousar o sol nos ombros de alguém. E sabe o que fiz? Nada, quase nada...conversei, li um livro em voz alta e joguei damas :-)

Há algum tempo que sigo o seu blog com frequência, mas só hoje senti vontade de o comentar, porque o tema toca-me. Desculpe-me o atrevimento.

11:15  

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