Thursday, December 09, 2004

Mentalidades

Por vezes há imagens que chocam, quadros que nos tocam ou situações que nos marcam.
A força desse choque, toque ou dessa marca, é directamente proporcional ao que de alienígena reveste o que observamos. Mas também o pode ser, relativamente à recorrência de que nos apercebemos existir, num insight inesperado, de uma imagem, de um quadro ou de uma situação.
No metro, hoje, tive uma vivência destas.
Ao observar um indivíduo a dialogar com o vazio, apercebi-me de que quase todos os dias observo alguém a falar sozinho pelas ruas de Lisboa, principalmente no metro.
Confidencio que é um quadro que me assusta, não por ter medo de "malucos" ou "desequilibrados", mas pela frequência com que os observo e pela ideia que me dá, que quando aquela ténue linha entre sanidade e a insanidade é transposta, a solidão parece ser absoluta.
É um quadro que também me preocupa. Suponho que teremos todos os nossos pequenos desequilíbrios, depressões, paranóias, traços disto e daquilo.. mas quando se começa a observar quase todos os dias pessoas que falam sozinhas na via ou transportes públicos, numa época em que há dias para tudo, para o HIV, Cancro, contra isto e contra aquilo, vítimas de tal e de tal ou a favor de W e de Z, estes parecem-me os esquecidos, e os que sofrem de conjunturas menos visíveis forçam-se por se esquecerem a si próprios.
Principalmente porque as suas particularidades daqueles, assim visíveis, escondem nos restantes rostos anónimos que observamos nos mesmos locais, as depressões, manias e dependências múltiplas (álcool, drogas, anti-depressivos, comprimidos ou outras), para não mencionar as que não conheço nem faço ideia.
A vergonha e a escravatura sob Aparência, inibem algo tão simples como um pedido de ajuda, que não é facilitado pelas mentalidades que rodeiam os meandros dos hábitos de saúde.
É preocupante observar que com tantas IPSS's proliferantes por este país, com tantos programas de apoio a serem desenvolvidos em tantas direcções, uma tão crucial - a da Saúde Mental - seja varrida para debaixo dos tapetes onde caminhamos exibindo forçadamente as marcas de perfeição que caracterizam um estilo de vida aceitável no imaginário comum.
Uma cultura social que dê a atenção e resposta eficaz às necessidades da Saúde Mental, não só tira da solidão esta gente cujo mundo colide com o nosso pudor, como também, talvez, contribua para a prevenção de muitos dos outros problemas que nos afectam como um todo, entre eles, a criminalidade violenta, violência doméstica, crimes sexuais, etc.
É mais uma vez triste, verificar que tal como "a SIDA é só para os outros", a doença mental, seja ela de que âmbito for, também o parece ser.
Apenas parece.
Empiricamente, tenho a certeza que a verdade íntima e obscura é outra, e se pudesse coligir incidências talvez esses Dias Internacionais Das Coisas Esquecidas (prevenção rodoviária, tabaco, mulher, violência doméstica, paz, criança e afins) passassem todos para segundo plano, face às estatísticas macabras que porventura se apresentassem.
Dá-me ideia que o mundo da Doença Mental, é talvez todos os mundos, o mais solitário. Seja pelo enclausuramento ou perda da consciência, pela vergonha e escravatura da Aparência ou pela simples inexistência de uma mão que ajude e conforte.
E na TV, não vejo uma sequer referência, anúncios ou campanhas sobre estas muitas Pessoas que Falam Sozinhas na Rua.
Humanitários?
Onde andam os pios personagens das causas humanitárias?
Onde? Como se escreve?
Pê.

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