Saturday, February 10, 2007

Para acabar de vez com a consciência.

Hoje é Sábado e é supostamente o dia de reflexão anterior à chamada às urnas que se verificará amanhã, Domingo 11 de Fevereiro de 2007. A pergunta colocada aos portugueses é de certa forma simplória, mas ainda mais, a tonalidade em que se colocou a discussão entre o “sim” e o “não”:

 

“Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”

 

Não pretendo, nem nunca pretendi substituir-me na autoridade que cada indivíduo deve ter sobre as suas opções, avaliações, nem – acima de tudo – moralizar os actos de outrem. A minha resposta é sim, obviamente, porque se trata de uma decisão cuja escolha cabe a quem se depara com a questão, e os parâmetros individuais cabem senão ao próprio indivíduo avaliar.

O Feto. O nascimento. O bebé. O ser humano.

Cientificamente, estão comprovados alguns factos interessantes que aqui são relevantes.

O ser humano nasce mais prematuramente do que os mamíferos mais próximos de nós. Segundo o Professor Doutor Carlos Amaral Dias, “tudo aquilo que se passa durante o 1º ano de vida da espécie humana é apenas aquilo a que eles [os biólogos contemporâneos] chamam uma fetalização extra-uterina, ou seja, os processos de fetalização continuam fora do útero, enquanto que nas outras espécies, que nos são similares, são adquiridos 'in-utero'”.

Esta prematuridade é uma estratégia da evolução conjugada com o aumento do perímetro craniano humano: ou as “mães” desenvolviam um pélvis enorme para comporta-lo no nascimento ou adoptavam a estratégia que se verificou: a prematuridade. O que é facilmente verificável: o tempo de dependência dos progenitores por parte de uma cria humana, ultrapassa em larga escala o equivalente nas outras espécies mais próximas.

Pode-se sintetizar esta questão – algo grosseiramente - da seguinte forma: Para as mães não terem que desenvolver um pélvis gigantesco para a cabeça do bebé passar, ele passou a nascer mais prematuro que nas outras espécies (com o processo evolutivo do crescimento craniano).

Ainda não saindo das lucidez do saber do Professor Carlos Amaral Dias, “Não há momento nenhum no mundo humano que seja tão violento, tão disruptivo como o nascimento. Porque é a passagem de uma meio hiper-protegido, que é o útero (...), para um lugar exterior a esse meio que é radicalmente diferente”. Evoco aqui, com as palavras do Professor, o trauma da respiração, o valor adjacente ao “poder respirar”, o valor intrínseco que tem tem a respiração ao longo da história humana, na arte, na literatura.. O nascimento provoca “de repente” que se tenha que respirar, ver e sentir de variadas formas, o que antes não acontecia naquele ambiente líquido e quente que era o útero da mãe. Este acontecimento, é assim o “gerador metafórico da experiência, da experiência humana”.

Um momento tão marcante como o nascimento, num ser prematuro, tem uma série de consequências encadeadas. Ainda segundo o referido Académico, a criança humana é o mais dependente de todos os seres. “Ao sermos prematuros por tanto tempo, temos a capacidade de manter características da prematuridade ao longo da vida, como a curiosidade. Apesar de muitos mamíferos serem curiosos, nós mantemos essa curiosidade ao longo da vida, enquanto eles param”. Por exemplo, os chimpanzés, os seres actualmente mais próximos de nós, aprendem até aos dois anos de idade.

NOTA: Tive acesso as estas ideias do Professor Doutor Carlos Amaral Dias, no entanto, desconheço a sua posição sobre o aborto, o referendo ao aborto ou qualquer outra questão relacionada. Esta recolha de ideias serve única e exclusivamente como ajuda à minha elaboração da definição de Vida Humana e nenhuma das posições aqui expressas poderá ser imputada ao Académico em questão.

A inteligência humana, deve-se, em grande parte a este paradoxo: O de nascermos mais prematuros que os outros mamíferos, que se pode afirmar que provoca um desencadear de reacções que originam a inteligência.

Esta diferenciação tão traumática entre o “antes” e o depois do “nascimento” num ser tão relativamente prematuro traz-nos finalmente à definição da vida humana. Poderia dizer, de certa forma, que o que define um ser humano como tal e no que será de futuro é o momento em que começa a respirar. O nascimento. Este é um factor crucial para nos diferenciar das outras espécies, pois o ser humano é-o enquanto tal, com as relações que estabelece começando com a dependência pós-nascimento. Esta é uma definição crucial de Vida Humana, pois uma criança que nasça sem depender dos seus, imagine-se sem outros humanos por perto, poderá ser muitas coisas, mas Humana no sentido lato do termo não será: falta-lhe a relação.

A Vida Humana distingue-se da vida animal com a Relação e não com o aglomerado de células em determinado ponto da sua existência.

A ciência fornece-me aqui dados e noções para eu poder avaliar e responder amanhã: Sim.

Esta confusão entre a definição de Vida Humana e vida animal é perversa, e leva a trocar a noção de vida de tal forma que não admira que exista hoje uma tendência essencialmente urbana de HUMANIZAR OS ANIMAIS, e da consequente mas silenciosa BESTIALIZAÇÃO DO HOMEM.

Vivi estas últimas semanas intoxicado com esta “coisinha” do “coraçãozinho” que já bate com poucas “semaninhas” do “fetinho” (saberá esta gente que as lagostas e as ameijoas são boas quando cozidas ainda vivas?).

Intoxicado e enjoado com a coisa das avaliações das condições de vida que teria um bebé ou não, com os “é preferível” aqui ou acolá.

Enojado com a coisa do “tem-se que melhorar o procedimento adopção”, quando como no caso de Torres Novas, hoje parece que o que basta para “adoptar” é uma nota escrita pela mãe e pronto.

Enraivecido pela comunicação constante de que “se votar sim, você é mau, mauzinho, mauzão, não p'esta!”.

Amedrontado com esta gente que o que quer é bebés, bebezinhos por todo o lado, muitos bebés...

Sobretudo muito preocupado com a crescente mercantilização das coisas do coração, nunca o “mau” e o “bom” foi tão perversamente aplicado sem Saber, sem conhecimento, sem Ciência, e tão sequer..... sem fé. Não vi uma única intervenção de fé que dissesse: “acredito em Deus e no sagrado do momento da concepção”, tão pouco...

Aterrorizado pelos argumentos da gente do não. Serão os mesmos que um dia quererão banir Darwin, ou o neo-Darwinismo e a Evolução das Espécies das escolas como já o fazem alguns americanos mais retrógados.

Este post surge hoje, dia de reflexão, numa tónica de desrespeito puro em resposta ao desrespeito pela consciência que se tem verificado.

E surge hoje, aqui, para lhe dar um repto:

 

Vote não, se deseja ser uma “boa pessoa”.

Vote não se o Saber, a Ciência e toda a evolução do conhecimento humano não lhe dizem nada.

Vote não, se deseja Acabar de Vez Com A Consciência.


2 Comments:

Blogger Luís Miguel Sequeira said...

Muito bem, João Filipe — só posso é concordar, tal como escrevi aqui :)

18:10  
Anonymous Anonymous said...

Lembrei-me varias vezes nesses ultimos dias de ter lido esse seu post colocado há meses atras ao ser bombardeada com as palavras de Bento 16 (estampadas nas primeiras páginas de todos os jornais "todo santo dia"), que visita o Brasil nesses dias de Maio, como se os leigos tivessem que engolir seus "ensinamentos" como pilulas vitais diárias. Ter que tolerar suas pregações condenando o aborto por onde passou foi terrivel. Por mais que se queira entender a lógica papal, a pregação poderia ser ao menos mais inteligente, contemporânea, talvez centrada no amor como um bem pessoal inalienável e por si demandador de exigências não conciliáveis com a licenciosidade e as relações frouxas tão combatidas por ele. A igreja não aceita o divórcio, esconjura o preservativo e as relações carnais, como se estas não fossem decorrentes do amor, da ternura, da devoção e da entrega ao outro que tanto prega.
Que o papa pare de jogar cartas com senhoras benemerentes da sociedade italiana (as que fazem grandes doações à igreja) e leia um pouquinho das palavras de seu antecessor Pedro, que dizia: "Acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude, a ciência".
Chega de discutir palavras do papa! Vim até seu blog, na realidade, para transcrever aqui uma posição muito interessante do jurista brasileiro Roberto Arriada Lorea, doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, publicada hoje no jornal Folha de São Paulo, falando sobre a descriminalização do aborto, tão debatida aqui nesses ultimos dias, como foi em Portugal por ocasião do referendo (já que vivemos, como voces, numa sociedade dominada pelos preceitos da igreja católica) e sobre os direitos do cidadão numa sociedade laica:

Em defesa das liberdades laicas
ROBERTO ARRIADA LOREA

Em sociedades democráticas, não é papel do Estado fomentar doutrinas religiosas. Quanto ao aborto, seguir ou não a orientação da igreja é decisão que cada brasileira tomará ao enfrentar o dilema de interromper uma gravidez indesejada. A laicidade do Estado impõe que a decisão seja acolhida pelo Ministério da Saúde, garantindo o pré-natal ou o acesso a um aborto legal e seguro.
O fato de vivermos em um Estado laico é que garante às brasileiras o acesso a informações sobre métodos contraceptivos e relações sexuais protegidas por preservativos. Essas informações permitem que a mulher, livre e conscientemente, tome suas próprias decisões. Se uma mulher católica não quiser usar a pílula ou se proteger, não está obrigada a fazê-lo.
O Estado laico respeita sua decisão, mas ela não perde sua liberdade para mudar de idéia quando quiser.
O debate sobre o aborto não produz consenso. Como resultado, nas sociedades democráticas, as mulheres não são obrigadas a abortar, pois gozam de autonomia reprodutiva. Pelo mesmo fundamento, não são obrigadas a levar a termo a gravidez indesejada.
A recente descriminalização do aborto pela sociedade mexicana (88% de católicos) traz bom ensinamento. O fato de a maioria ser católica não impede que se respeitem as minorias.
Ser católico não impede que se seja laico, isto é, que se aceite que existem pessoas que pensam diferente e que também essas pessoas devem ter seus direitos garantidos pelo Estado.
A reação adversa à proposta de descriminalização do aborto expõe nossa cultura jurídica monárquica, tão afeiçoada à desigualdade. Governantes, legisladores e juízes não sentem necessidade de descriminalizar o aborto pois, ante uma gravidez indesejada, independentemente do que pensem a respeito, têm liberdade para acessar um aborto legal (de fato) e seguro.
Compreender como opera essa lógica excludente contribui para enfrentar a questão. Tomemos o exemplo do ensino religioso na escola pública. Nós, das elites, não somos atingidos, pois pagamos escolas privadas. Compramos a liberdade de escolher se nossos filhos terão educação confessional ou laica. Se outras pessoas não podem pagar por escolas laicas e são obrigadas a enviar os filhos a escolas públicas confessionais, onde se convertem em minorias estigmatizadas, é problema delas. Se suas consciências e crenças estão protegidas como garantias fundamentais na Constituição, é problema delas. Se a dignidade dessas famílias é violada a cada dia letivo, é problema delas.
Numa interpretação jurídica simplória, admite-se o ensino público religioso, aplicando-se uma regra (art. 210, parágrafo 1º, CF) que viola o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado no primeiro artigo da Constituição. Num paralelo entre nosso ordenamento jurídico e o sistema solar, equivale a dar maior importância a Plutão do que ao próprio sol.
Como se forja uma cultura jurídica tão insensível às liberdades do outro?
Impondo às minorias um tratamento desigual desde os primeiros dias na escola. Privilegiando um determinado pertencimento religioso em detrimento de outras crenças -ou da não-crença. Submetendo crianças e adolescentes a um tratamento desigual durante gerações, formamos uma sociedade indiferente à desigualdade. Quatro séculos de ditadura religiosa debilitaram nossa capacidade de lutar pelos direitos de quem pensa de forma diferente de nós.
O respeito à pluralidade é condição para um enfrentamento da questão do aborto que fortaleça a cidadania. O Estado é o responsável pela formação da consciência cívica das futuras gerações do nosso povo, valorizando as diferenças, em vez e hierarquizá-las.
Daí a necessidade de um ensino público laico e inclusivo. A concordata proposta pela Igreja Católica ofende a laicidade afirmada no artigo 19, I, da CF, e exige soberano repúdio do Estado brasileiro, que é laico e tem por objetivo promover uma sociedade livre, justa e solidária.

14:21  

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