Monday, November 08, 2004

A Memória.

Tinha um ano e poucos picos.
Subia a encosta da antiga arriba da linha do Estoril.
Não me apetecia andar.
Subir naquele esforço desde a Estação do Monte Estoril até ao local atrás de uma cortina sombria onde me dizem ter vivido, era um suplício.
Era uma Diáspora de um ser de colo.
Fiz birra.
Segurava um Corneto de Morango.
Parti o cone empastelado de derretimento na mão.
Fiz Política.

Mais birra.

Viro-me para trás, fito o sol poente sobre a enorme boca do mar que mais tarde vim a conhecer como Barra do Tejo Ou Mais Além.
Vejo um barco enorme: Petroleiro? Cargueiro? Não interessa, mas era muito, muito cor de laranja.
Era o mesmo barco,
o tal que pouco meses mais tarde chamaria de Co'b'ianja Ba'co.
Era o mesmo barco,
Indubitavelmente.
Era o mesmo barco,
que durante anos eu procurava pela janela da Linha.
Era o mesmo barco,
que de tempos a tempos reencontrava quando ia pela mão de uma origem.

Foi aquele barco que me fixou o acre seco do Sal do Guincho, do Sal da Galé, as cintilâncias daqueles sonhos no Deserto Australiano, aqueles brilhos doirados do Sol nas pequenas ondas no Tejo, e nas ondas das dunas do mar de areia de Dune. Autêntico silício liquefeito.
Cada um daqueles pequenos brilhos próprios do mar calmo de fim de tarde de verão, cuja existência é tão breve como absorta, é uma partícula naquele fulgor plano do formigueiro do peito com que o orgasmo dificilmente compete.
Aqueles traços aloirados de fim de tarde que descem como estrelas cadentes sobre a individualidade da mais pequena crista da menor das ondas, só têm páreo com os que descem sobre um rosto de afecto.
Sobre um rosto levemente acobreado.
Aquele Sol alaranjado, aquele Co'b'ianja Ba'co, polarizam-me as pulsações e tornam-me ofegante, não por falta de ar mas por dispensar o peso da respiração, e pela dispersão naquele manto de ondas.
Aquele Co'b'ianja Ba'co sempre cortou a respiração, aquele Sol alaranjado sempre aplacou qualquer consternação e eu sempre peneirei a minha vida naquela rede cintilante sobre o mar da fim de tarde de verão.
Sempre me revi naquele rosto desenhado, acobreado e doirado de textura de mar, sempre lhe pungi a minha resplandecência de Verdade, sempre lhe diluí Aparência, naquele
Co'b'ianja Ba'co Sob o Sol Alaranjado, Ao Fim Da tarde de Verão.

É aquele mundo que nunca deixou de existir na minha Verdade, pois estou sempre na Barra do Tejo Ou Mais Além.

Era o mesmo barco, aquele que sempre me transportou.
Nas subidas a pé por encostas de arribas, entre a vida, essa, e as marés.
Entre a estreita faixa de areia e lá, o alto, onde as coisas, dizem, acontecem.
Entre a Barra do Tejo Ou Mais Além e lá o alto do Monte Estoril atrás da cortina sombria da Memória.

A Memória tem este valor, este fulgor, este alcance e esta Verdade.
Centra-se na vontade, na birra.
Na Diáspora, na Política, o afecto é Origens...

É este mesmo, o barco!
Este em que me transporto
na Diáspora, na Política, em que a Memória existe.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home