Tuesday, April 26, 2005

Z.B.

Z.B. era um rapaz que conheci entre os nossos 6 e 10 anos.

Com a mesma idade que tínhamos então, note-se o pretérito perfeito, já que não sei se Z.B. ainda tem a mesma idade que eu, frequentávamos a mesma escola primária, a mesma aula e o mesmo professor.

Z.B. era de uma família recém-chegada do Norte, do Minho, creio, como tantas outras que migraram naquele fim de década de setenta.

Z.B. tinha um sotaque que rasgava todas as palavras que claramente denunciava a sua origem. Obviamente que era alvo das cruéis chacotas cuja mestria infantil acentuava a diferença.

Z.B. tinha outra particularidade. Era o único que naquela sala de aula chegava com segmentos de rectas oblíquas, de tonalidades azuladas ou arroxeadas, cheguei a contar mais de 10, cravadas nas suas costas.

Z.B. conhecia de facto e intimamente as texturas da mangueira, do cinto, ou do que fosse que ocorresse na mente do seu pai, sempre que havia necessidade de educar.

Z.B. foi-se tornando conflituoso, com o passar dos anos, na mesma medida em que o seu sotaque se ia reduzindo a um mero brilho em determinadas terminações de frase.

Durante alguns anos, nunca mais reencontrei Z.B. Separámo-nos na aula e na escola naquela transição que havia para o “ciclo preparatório que já não o era”, porque era unificado, mas ainda assim o era. Vá-se lá perceber estas coisas dos gabinetes do ME e da FENPROF., a quem Z.B então não interessaria: a uns porque não seria então um facto político, a outros porque Z.B. não contribuiria para a sucessiva justiça e aumento dos direitos dos trabalhadores com relativização de responsabilidades e diminuição do critério de talento necessário para ensinar. Tínhamos então 10 anos.

O facto é que em determinado contexto, reencontrei, ou penso que reencontrei Z.B.. Eram os meus 16 anos, e então fazia questão de ter amizades ou meramente “esferas de contactos” transversais que por vezes meandravam a marginalidade.

Em determinado momento vi ao longe Z.B. com a nota de mil escudos enrolada em canudo sobre uma folha de prata. Chegámos-nos a cruzar mas nunca arranquei o contexto para lhe perguntar “és o Z.B.”, pois o referido evitava e também o meu contexto de “passagem” não se demorou o suficiente para encontrar a oportunidade.

Mais tarde soube que “fazia” vivendas. Nunca nada mais soube.

Mas nunca me esqueci da violência da mangueira sobre aquele meu colega da primária em Cascais.

Algo muito distante do “refazer” que pretendem “Morangos com Açúcar” e outras novelas da TVI e não só, em que familiares se tratam por “você”. Lá onde as mangueiradas não entram, só pode ser uma fraude, e só por presunção ou manifesta reescrita da realidade, se caracteriza como “baseada” em algum ambiente real.

Mais uma vez encontramos a diletância entre a Aparência que se quer dar de algo, e o que realmente se sucede dentro de portas.

Mais uma vez se comprova as abordagens labregas que tão provincianamente fazemos à nossa realidade.

Z.B. fica aqui, como muitos fragmentos de memórias que possuo, de muitas pessoas e situações que surgem repentinamente, sabe-se lá porquê.

Talvez por muitos Z.B.'s não só por Cascais, como por todo o Portugal, que se iniciam na mangueira ou no cinto e acabam na nota de mil paus enrolada, ou talvez porque as minhas lembranças neste registo não se cinjam meramente a Z.B.

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